19.5.06

a criança dorme.

"Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala nas grande barracas que estão, dizem, lá em baixo ao fundo do jardim."
(fernando pessoa, livro do desassossego, 166)
assim eu achava que seria minha vida. assim eu a rejeitava. quis não mais ser "em verso ou prosa, empregado de carteira" . quis ser mais que gato ou herói. ou antes: quis ser diferente. ainda quero. quero uma vida de verdade, em que eu saiba se é dia ou noite, se tenho fome ou sono. em que não confunda a dor da angústia com a de um infarto. em que eu saiba a diferença entre corpo e sentimentos, e possa sentir um e aceitar o outro. em que não ande sempre no piloto automático. uma vida em que o domingo seja meu e não uma disputa entre faustão e gugu. em que não esqueça o que é inesquecível.
não quero nada que outros tantos não queiram.
quero um querer comum, um sorvo de ar, uma gota de chuva, um riso.
quero ser o que não ouso ainda porque me desconheço. mas que tenho sido, ocultamente, através dos tempos.
estou em gestação. no escuro do meu próprio desassossego, nem imagino o que seja a luz. flutuo no líquido morno e nutritivo de tantas interrogações. e espero, mãe e feto, parteira e dor, tesoura e amanhã.
"Se as coisas são inatingíveis... ora! / Não é motivo para não querê-las... / Que tristes os caminhos se não fora / A mágica presença das estrelas!"
(mario quintana - espelho mágico)

18.5.06

com mil demônios

tenho ficado muito tempo em casa. tenho tido muito tempo. e não sei bem o que fazer com ele. claro que me ocupo. numa casa sempre tem mil e uma coisas pra fazer, e ainda aparecem uns freelas... mas ainda assim é muito tempo livre. pra pensar. sabe o ditado cabeça vazia, oficina do demo (ou coisa assim)? pura verdade. o demônios - no conceito grego - resolvem todos falar comigo ao mesmo tempo. e eu descobri que tenho um pra cada personalidade. (meu nome é legião...) há tempos venho tentando me imbuir do conceito budista do não-desejo. do desapego. da certeza da impermanência. mas fomos todos criados para exatamente o contrário. meus demônios me exercitam, me colocam à prova. alguns desejam o novo, o inesperado. outros desejam manter a qualquer custo uma vida que não existe mais. e há os que temem. e os que se enraivecem. e os que choram e sentem dor. mas como existem deuses, há também os que afagam e acarinham. e me guiam gentilmente - às vezes me empurram - para fora do pântano.
tenho lido muito. ler é meu refúgio. e meus demônios lêem comigo e comigo interpretam e questionam e aprendem. e se divertem também, pelo menos alguns. sabe de uma coisa? meus daemons são gente boa. talvez, não fossem eles, meus dias seriam apenas de silêncio e paz. algum tipo de morte. meus demônios me mostram que estou viva.