13.11.08

pequenas coisas

se eu pudesse parar um pouco

descer um pouco

sorrir um pouco

aliviada

se eu pudesse escrever recados

com destinatários

se eu pudesse sair na chuva

escolher a fruta

esconder as farpas

estender as roupas

lavar os vidros

das pequenas janelas

se eu pudesse sussurrar encantos

revolver a terra

plantar meu fado

recolher as pérolas

e amar os porcos

se eu pudesse perdoar um pouco

descansar um pouco

dormir de leve

acordar baixinho

devagarinho

e para sempre.

só um pouco.

12.10.08

quando eu não estava olhando

a paisagem mudou, era já outro cenário.
eu não vi.
as notas eram outras, como eram novas as vozes.
cabelos brancos, uma ligeira barriguinha.
eu não vi. onde eu estava?
foi como perder aquela parte essencial do filme, a hora da revelação:
quem matou odete roitman?
agora, o frio nos ossos
me cantarola chico buarque...
já passou, já passou...
e foi justamente
quando eu não estava olhando.

28.7.08

ao senhor dos jardins


ensina-me, senhor, a viver a vida das borboletas,
a ter a calma paciência das lagartas que se enrolam
voluntárias em casulos de escuridão.
proteja-me da ânsia pelo movimento
que me impeça de cumprir o tempo da mutação.
permita, então, que eu perceba o soar da hora
de romper liames e aceitar minhas asas em sua completa extensão.
guia-me pelo mundo das cores,
provê-me da alegria da impermanência
que será - e só ela - meu alimento sagrado.
ensina-me, com teu amor, a viver a intensa beleza do efêmero,
a fartar-me da delícia de cada momento,
como se fossem todos eles um sinal de eternidade.
e quando se acabe este dia, leve e tranquilo como anoitecer ou
em dor e medo como o fim do amor,
dá-me a sabedoria de abandonar as velhas asas,
descer ao solo e,
humildemente, retomar o caminho da lagarta,
até que o cansaço me conduza de novo ao casulo
onde a vida trabalha silenciosa e obscura
para entregar-me ainda outra vez
as asas da plenitude.

pintados

olho para o armário
fechado
vermelho, brilhante,
mogno aviltado.
guarda roupas, sapatos,
contas, cabides vazios
dependurados.
como eu guardo
máscaras, sorrisos,
silêncio, carinhos
não levados.
eu e o armário,
fechados, guardamos o que nos é de direito.
ele - madeira
eu - madura
nós dois - pintados.
guardo no armário minhas tralhas.
e eu, são de quem as que guardo?

19.4.08

dor antiga

pra que sofrer
por uma dor que não vai
parar de doer

falar mal pra quê?
chorar não faz sentido
é uma coisa antiga
vai parar pra sofrer, por quê?


fica lá, fica lá
e não há o que fazer
é uma dor, só uma dor
então deixa doer

vai chegar um dia
em que a dor vai cansar de ficar
nessa casa vazia,
sem par,
vai cansar de doer sozinha

nesse dia, ela vai abrir a porta
vai deixar a ferida morta
vai virar cicatriz,
que importa
se agora ela dói tão quieta
amanhã vai deixar deserta
a paisagem do meu coração

e a chuva de pranto
que lava tudo
no meu chão vai penetrar bem fundo
e fazer brotar um jardim

me perdoa, então, mestre Cartola,
se suas rosas não falam
as minhas, elas não se calam
e vão falar de poesia e amanhã

mas hoje eu apenas me digo
nem toda dor é castigo
é uma dor, só uma dor
então deixa doer .

5.4.08

promessas antigas

ficam guardadas em barris de carvalho,
do tempo pegam um sabor quase cálido
falam baixinho palavras macias
e embriagam em leve euforia
promessas antigas têm mais valor
não são mais vazias,
destilam calor.
encho meu copo
e te sacio.
na tua, a minha boca
devora o vazio.

10.2.08

como quase sempre


digo sempre quase nunca
e raramente
acredito no infinito

sou da terra e do ar
opostos que se atraem
com a tranquilidade
de quem confia
na teoria da relatividade.

nesse momento a vida
passa em ritmo bossa nova
e joão gilberto me sussurra
esperanças de azul

quase nunca é por enquanto
advérbio de credibilidade
atemporal
como a rolleiflex
que me revelou
sua enorme
imensidão.

e a física me explica
o vazio entre dois corpos
e como é que pode:
o barquinho vai
se a tardinha cai...